quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

As contas do Serviço Nacional de Saúde - parte 3

Caso ainda não o tenha feito, recomendo a leitura do artigo anterior com as partes 1 e 2 da análise às contas do Serviço Nacional de Saúde [link].

Nesta terceira parte da análise que agora publico, à semelhança dos anteriores, não perco muito tempo com rodeios e disponibilizo o sumo do trabalho através de quadros com os números recolhidos num Ficheiro PDF. A introdução contém alguns reparos técnicos relevantes e enumera as limitações encontradas no trabalho, seguindo-se um índice de todas as entidades e respetivos links para as fontes de informação utilizadas. Os quadros com as informações recolhidas estão divididos pelas várias regiões, nomeadamente: Norte (N) com 15 entidades, Centro (C) com 9 entidades, Lisboa e Vale do Tejo (LVT) com 11 entidades e, finalmente, Alentejo e Algarve (A&AL) com 5 entidades.

A grande condicionante (limitação!) do estudo, tal como referido na introdução do mencionado ficheiro, é a disponibilidade do relatório e contas (R&C) de cada entidade, ou seja, a transparência e o rigor da informação financeira que deve ser obrigatoriamente pública. Pois bem, muitos dos hospitais não disponibilizam o relatório e contas mais recente (de 2015) nos seus sites, nem tão pouco o orçamento em vigor (2016). Em 40 hospitais EPE analisados, 17 divulgam R&C desatualizados (de 2014 ou 2013) e 1 nem sequer divulga o seu R&C. Não obstante, realizei a análise e publico-a porque os portugueses devem tomar real noção do que se passa no SNS e do estado em que ele se encontra. Salvo melhor opinião, as contas estão muito más no papel mas na realidade (prestando atenção às reservas e às ênfases colocadas pelos ROC das entidades), elas estarão EVENTUALMENTE muito, mas muito piores.
Partilho os meus destaques (“preocupações”), com base nos quadros disponíveis no ficheiro acima mencionado:

A PRINCIPAL QUESTÃO: COMO ESTÃO OS HOSPITAIS?

em milhares de euros
Valores Médios Norte Centro LVT A&AL Nacional
Património  56 488 39 190 101 367 62 849 65 733
Fundo Patrimonial 37 939 22 561 -5 043 9 910 19 155
Percentagem perdida 33% 42% 100% 84% 71%
N.º EPE no art.º 35.º CSC 7 em 15 5 em 9 9 em 11 3 em 5 24 em 40

Conforme se pode constatar, 24 entidades estão em situação de falência técnica (com fundos patrimoniais negativos) ou quase falência (com fundos patrimoniais abaixo de metade do património). Com contas atualizadas e com as reservas (e ênfases!) das Certificações Legais das Contas (CLC) consideradas na melhoria da informação financeira, atrevo-me a dizer que teríamos muitas mais. Lisboa e Vale do Tejo aparece como a região mais crítica.

em milhares de euros
Valores Médios Norte Centro LVT A&AL Nacional
Resultado Líquido do R&C -2 932 -4 918 -7 025 -1 913 -4 377
Resultado Líquido '16 (Orçamentado) -7 085 -6 293 -14 462 -2 953 -5 578
Agravamento previsto 142% 28% 106% 54% 27%
EPE c/ resultado negativo no R&C 11 em 15 6 em 9 11 em 11 3 em 5 31 em 40

Os resultados são muito maus e a tendência é para piorar porque nos últimos anos, salvo raro exceção, os resultados líquidos dos hospitais têm sido negativos e, em muitos casos, tremendamente negativos. Espreitando os orçamentos (ou “planos estratégicos”) que se conseguem encontrar, vislumbra-se o agravamento destes desempenhos económicos negativos já em 2016. E nunca é demais destacar que o resultado negativo de um exercício económico não morre nesse período, ele ACUMULA com todos os períodos. A bola de neve já tem um tamanho considerável, restando apenas saber para cima de quem vai rolar, numa época em só se fala de resgate… de bancos.

Valores Médios Norte Centro LVT A&AL Nacional
PMP divulgado no R&C (dias) 129 245 372 134 213
PMP em 30.06.2016 (site SNS) 137 161 275 133 180
Média > 90 dias 47 71 185 43 90
N.º EPE com PMP > 90 dias 9 em 15 5 em 9 10 em 11 3 em 5 27 em 40






Naturalmente, esta debilidade financeira geral dos hospitais EPE não afeta apenas os utentes. Também os credores são penalizados conforme se pode constatar nos Prazos Médios de Pagamento (vergonhosos) com que o setor os presenteia. Se já estivessem disponíveis os PMP a 30.09.2016 no site do SNS o cenário ainda seria pior, conforme se pode constatar nas páginas 45 (gráfico 23) e 64 (tabela A16) da síntese de execução orçamental a outubro publicada pela DGO [link]. Mesmo assim, com esta informação já dá para ver que 27 das 40 entidades têm pagamentos em atraso de acordo com o conceito legal previsto na famosíssima Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso (>90 dias).
Quem quiser consultar os valores (astronómicos) dos passivos em causa, em cada hospital EPE, sugiro a consulta dos quadros que constam no ficheiro acima partilhado na introdução.

EXEMPLOS DE CANCROS QUE PODEMOS DIAGNOSTICAR NAS CONTAS DOS HOSPITAIS

1. Muito do património imobiliário que consta na contabilidade destes hospitais provavelmente... não lhes pertence. De facto, são muitos aqueles que exercem a sua atividade em edifícios que não estão formalmente registados em seu nome, nem na Conservatória de Registo Predial nem na Autoridade Tributária. Estão contabilizados ao abrigo do “princípio da substância sobre a forma” que... não existe no normativo POC-MS. De facto, estes imóveis, que pertencem formalmente ao Estado (acionista único), estão registados no património dos hospitais EPE e, presumo, também no património do próprio Estado – simultaneamente em dois lados, portanto! Este artifício (que até pode ser legitimado, se devidamente formalizado do "lado do Estado", porque os ativos estão efetivamente ao serviço dos hospitais EPE) permite inventar um ativo de valor monumental (que na realidade pertence a outra entidade) e assim mitigar os valores dos fundos patrimoniais negativos (ou potencialmente negativos), pelo que tenho particular curiosidade em saber como será esta questão tratada na consolidação das contas no "Grande Balanço da Administração Pública". Para além desta particularidade no património imobiliário dos hospitais EPE acresce uma outra também muito relevante. A maior parte dos hospitais mais antigos, agora incluídos nos centros hospitalares, exercem a sua atividade em edifício(s) da Santa Casa da Misericórdia local, ou seja, em propriedade alheia, sendo raro o anexo ao balanço que evidencie os montantes de investimento já realizado nessa propriedade alheia, que depois de abandonada (como tem sucedido na transição para unidades mais modernas) reverte para os seus legítimos proprietários.

2. Na generalidade dos hospitais EPE, o processo de circularização (confirmação externa) de saldos devedores de terceiros não revela resultados satisfatórios, designadamente em relação a Companhias de Seguro, a Subsistemas de Saúde (Públicos e Privados), à Administração Regional de Saúde (da região da entidade) e nalguns casos também em relação a outros hospitais EPE, não permitindo ao ROC concluir acerca dos possíveis efeitos nas Demonstrações Financeiras. Nem ele, nem ninguém. Falamos em centenas de milhões de euros de saldos a receber que podem ser colocados em causa, quanto à sua razoabilidade (muitas vezes questionada pelos alegados devedores) e até mesmo quanto à sua cobrabilidade (considerando a antiguidade das mesmas e a débil situação financeira de muitos dos devedores). O cúmulo da situação reside no facto da maioria das situações respeitar a entidades dentro do SNS, não parecendo existir, à data, vislumbre de uma estratégia setorial para sanear estes saldos dúbios para além de uma “Clearing House” do Ministério da Saúde (para facilitar os encontros de contas entre entidades do SNS mas que funciona a carvão). Porquê? Parece-me, salvo melhor opinião, por falta de vontade. Porque no dia seguinte a uma eventual limpeza, remanesceria um monumental buraco nas contas de muitos destes hospitais e, consequentemente, do próprio SNS. A título de exemplo, posso referir os muitos milhões de euros de saldos devedores da ADSE, da IASFA e da SADGNR/PSP "pendurados" nas contas dos hospitais EPE desde 2010, ano em que os utentes destes subsistemas passaram a ser incluídos no âmbito da faturação dos Contratos-Programa celebrados com a ACSS. É verdade que o Estado e as instituições que o formam têm que ser tratados como “pessoa de bem” e os hospitais EPE, nesta perspetiva (e porque o POC-MS também não permite), não constituem provisão para estas dívidas em mora, mas quando as entidades públicas devedoras são questionadas acerca das respetivas dívidas por pagar aos hospitais, elas respondem... que não devem nada. Então quem paga?

3. O principal cliente dos hospitais EPE é a ACSS, entidade do Setor Público Administrativo que intermedeia as transferências do Orçamento de Estado (vide parte 2 desta análise), suportadas por um Contrato Programa celebrado individualmente com cada entidade, para cada ano. Em função do clausulado, cada hospital EPE recebe adiantamentos mensais (daí os grandes saldos de adiantamentos de clientes) e vai estimando a produção efetuada e respetiva remuneração, num processo deveras complexo de compensações e penalizações. Só pode faturar à ACSS quando ocorre a validação das verbas apuradas, o que pode demorar… anos. Verificamos assim elevados saldos de cliente por receber (ativo), acréscimos de proveitos ainda por faturar (ativo) e adiantamentos por regularizar (passivo). Simplificando, em termo líquidos e em jeito de contas de merceeiro, posso dizer que os hospitais EPE têm muito (mas mesmo muito) dinheiro a haver do Estado no âmbito dos contratos programa que se encontram por encerrar. Apesar de, mais acerto menos acerto (de milhões em cada hospital EPE), não se temer o não recebimento das verbas, as administrações hospitalares lidam com outra grande incerteza… QUANDO é que vão receber.

em milhares de euros
Valores Médios Norte Centro LVT A&AL Nacional
Dívidas a receber de IMS 14 670 25 298 40 006 49 745 28 765
Adiantamentos de IMS -25 306 -37 112 -78 835 -99 805 -71 717
Estimativa Proveitos CP por faturar 43 216 27 305 81 726 10 565 32 858

nota: IMS significa Instituições do Ministério da Saúde



Conforme explicado nos parágrafos anteriores, persistem muitos milhões de euros “pendurados” dentro da máquina do SNS. Convém realçar que os valores do quadro são MÉDIAS POR CADA HOSPITAL EPE!

4. Os Anexos ao Balanço e à Demonstração de Resultados disponibilizam, na generalidade dos hospitais EPE, listagens de processos judiciais em curso que são enquadrados numa espécie de “passivo contingente” que não existe no normativo POC-MS, mas que serve, em muitos casos injustificadamente, para não constituir provisões para riscos e encargos que iriam onerar ainda mais os resultados de cada exercício. Ao analisar as contas de determinado hospital EPE, devemos ter e consideração este pequeno pormenor que nalguns casos pode ser representativo de uma contingência global milionária. Entre os contenciosos existentes, deparamos com outra situação caricata que se trata… da natureza FISCAL de muitos deles. Hospitais EPE detidos a 100% pelo Estado estão em contencioso fiscal contra... o próprio Estado! Relativamente a isto recomendo a leitura de um artigo anterior do blog [link].

E OS GASTOS COM PESSOAL, COMO ESTÃO?

em milhares de euros
Valores Médios Norte Centro LVT A&AL Nacional
Vendas e Prestações de Serviços 106 538 99 739 145 859 92 682 114 089
Custos com pessoal 59 043 59 971 80 942 52 258 64 426
Número de funcionários  2 037 2 093 2 936 1 907 2 281
Custo médio por funcionário 29 29 28 27 28
Peso Custos c/ pessoal s/VND+PS 55% 60% 55% 56% 56%

Os valores médios que constam na tabela parecem revelar um certo desequilíbrio entre a região centro e as demais regiões, considerando a relação entre os custos com pessoal e o volume de vendas e prestações de serviços. Podia avançar com várias teorias possíveis para justificar o comportamento deste indicador, mas sugiro, em vez de suposições, que a tutela averigue a razão concreta deste facto e proceda em conformidade.

DOIS PEQUENOS GRANDES PORMENORES PARA CONCLUIR

39 dos 40 hospitais EPE analisados prestaram contas ao abrigo do "velhinho" POC-MS que já está completamente desvirtuado das normas contabilísticas nacionais do privado e internacionais do próprio setor público. Permitam-me fazer um enquadramento “histórico” do que aconteceu recentemente, de uma forma muito simples. O Despacho n.º 1507/2014 de 16 de janeiro, dos Gabinetes de Estado do Tesouro e do Secretário de Estado da Saúde, dispunha que era "obrigatoriamente aplicável às entidades públicas empresariais da área da saúde, incluindo os hospitais, os centros hospitalares e as unidades locais de saúde o Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho (…)” e a obrigatoriedade “(…) iniciava-se com a apresentação de contas de 2014”. Entretanto, já decorria 2015 (na altura em que se estavam a preparar os relatórios e contas de 2014) e isto foi adiado para a prestação de contas de 2015. Depois, já decorria 2016 e isto foi cancelado porque ia entrar em vigor em 2017 o SNC-AP (vide artigo anterior do blog acerca do assunto). Ainda decorre 2016... e a introdução do SNC-AP vai ser muito provavelmente adiada PELO MENOS por um ano. Trata-se, portanto, de uma normalíssima "reforma" das normas contabilísticas da Administração Pública. Nada de novo neste campo.

A cobertura de seguros na generalidade dos hospitais EPE abrange apenas a responsabilidade civil obrigatória relativamente a viaturas (imobilizado corpóreo), acidentes de trabalho (pessoal) e, eventualmente, dadores de sangue. Não existem, portanto, seguros que cubram o património (móvel ou imóvel) nem outros géneros de responsabilidade civil em termos genéricos (por se tratarem de locais públicos sujeitos a acidentes nas suas instalações que podem afetar terceiros) e específicos do setor (por se tratarem de instituições do setor da Saúde, responsável pelos serviços que presta aos utentes em complemento com a responsabilidade profissional dos médicos). Apesar de não existirem consequências desta situação ao nível das demonstrações financeiras, muitos ROC alertam para os riscos que podem advir para as entidades na eventual ocorrência de sinistros não segurados, especialmente os de grande magnitude que podem afetar um ou vários serviços, tanto em termos materiais como humanos. Do lado dos hospitais EPE, a ausência das mencionadas coberturas de seguro é geralmente justificada: pela importância consensual em termos sociais da atividade pública que desenvolvem; pela capacidade do acionista (Estado) em assumir eventuais perdas resultantes dos acontecimentos seguráveis e previsível aceitação em repor a continuidade da atividade nesses casos; e pelo elevado preço a pagar pelas apólices, em contextos (recorrentes) de limitação dos custos operacionais e restrição orçamental. Mas pergunto uma vez mais, se o Estado não paga o normal, pagará o anormal? Claro que sim… mas QUANDO?

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